terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

CARACTERÍSTICAS DO ANÚNCIO QUERIGMÁTICO


Passamos a enumerar algumas características do anúncio querigmático, tais como nos trazem os Subsídios Doutrinais n. 04, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil:

a) Baseado no testemunho e alimentado pela força do Espírito Santo (10).
b) “É um anúncio pelo qual se atualiza a irrupção do Espírito de Deus que transforma a face da terra e converte os corações (20)”.
c) É um anúncio que se baseia no poder Deus e não na arte retórica dos homens nem na sabedoria deste mundo (20).
d) É marcado pela atualidade. Por meio dele, surge um fato novo na história: a salvação é oferecida e o é agora, no presente dos ouvintes. Traz-se uma proposta de libertação atual e real, que se comunica por meio daquele que proclama o nome de Jesus, fonte de perdão dos pecados para todas as pessoas e povos (20, 27 e 28).
e) Possui “caráter imperioso e expansivo, que não é possível sem uma autêntica experiência de Deus (26)”.
f) O querigma interpela e realiza um diálogo: por meio dele o próprio Senhor entra em um diálogo com a liberdade da pessoa (22).
g) É um anúncio contextualizado

IGREJA: LUGAR DO ENCONTRO COM JESUS CRISTO

Os bispos Latino-americanos e do Caribe ressaltam a dimensão eclesial da nossa fé com as seguintes palavras: “afirmamos que a fé em Jesus Cristo nos chegou através da comunidade eclesial e ela ‘nos dá uma família, a família universal de Deus na Igreja Católica. A fé nos liberta do isolamento do eu, porque nos conduz a comunhão (DAp, n. 156)”.

O evangelizador deve ter sempre claro que nunca anuncia a mensagem de Jesus Cristo em seu próprio nome, ou em razão da incumbência, que lhe foi atribuída por certo grupo ou movimento. O sujeito do querigma é sempre a Igreja. E através desse anúncio a Igreja é sempre fundada, onde ainda não se acha, como no-lo mostram, por exemplo, as pregações querigmáticas dos apóstolos Pedro e Paulo – acima transcritas – sempre terminadas com o convite à conversão e ao batismo.

Nessa linha, escreveu o então teólogo Joseph Ratzinger – Bento XVI – em seu livro Dogma e Anúncio: “O pregador não anuncia por iniciativa própria, nem por encargo de qualquer comunidade particular ou de algum outro grupo, mas por incumbência da Igreja, que é uma em todos os lugares e todas as épocas. Como a sua própria fé só pode subsistir eclesiasticamente, também a palavra que a desperta e sustenta tem necessariamente caráter eclesiástico”.

Portanto, é através da igreja que recebemos a fé, que vivemos o encontro pessoal com Jesus, é a partir dela que anunciamos a vida nova que nos vem Dele, e a adesão a esta mesma fé leva constantemente à conversão e ao seguimento de Cristo no seio da comunidade dos seus discípulos, a Igreja, “incumbida do anúncio e do testemunho do evangelho (CNBB, Subsídios Doutrinais 04, p. 27)”. Essa mesma consideração é claramente feita no Documento de Aparecida: “O encontro com Cristo Graças à ação invisível do Espírito Santo realiza-se na fé recebida na igreja”.

Na Igreja, recebemos a Sagrada Escritura, escrita pela inspiração do Espírito Santo (DV 11), a qual, com a Sagrada Tradição, é fonte de fé e de vida para a Igreja e é a alma da sua Evangelização.

A Sagrada Escritura dá testemunho de Jesus Cristo. Está, no dizer de Sto. Agostinho, “grávida de Jesus Cristo”. “A contemplação do rosto de Cristo não pode inspirar-se senão daquilo que se diz Dele na sagrada escritura, que está, do princípio ao fim, permeada pelo seu mistério, este aparece obscuramente esboçado no Antigo Testamento e revelado plenamente no Novo. De tal modo que desconhecer a escritura é desconhecer a Cristo – dizia São Jerônimo (Carta Apostólica No Início do Novo Milênio)”.

Portanto, se queremos viver um encontro pessoal com Jesus Cristo, devemos descobrir uma relação nova com a Sagrada Escritura. A escritura tem que fazer parte da minha vida. Devo procurar compreendê-la, estudá-la e, mais do que tudo, deixar-me movimentar pela Palavra de Deus, descobrir quais são as solicitações que o Espírito Santo me faz, através da Sagrada Escritura. Nesse itinerário, somos convidados ao exercício da leitura orante da palavra de Deus.

“Com seus quatro momentos (leitura, meditação, oração, contemplação), a leitura orante favorece o encontro pessoal com Jesus Cristo semelhante ao modo de tantos personagens do evangelho: Nicodemos e sua ânsia de vida eterna (Jo 3, 1-21), a Samaritana e seu desejo do culto verdadeiro (Jo 4, 1-42); o cego de nascimento e seu desejo de luz interior (Jo 9), Zaqueu e sua vontade de ser diferente ... Todos eles, graças a esse encontro, foram iluminados e recriados, porque se abriram à experiência da misericórdia do Pai, que se oferece por sua Palavra de verdade e vida (documento de Aparecida)”.

“A lectio divinae é, ao mesmo tempo, mais e menos do que o estudo teológico. Menos, porque sua objetividade, mesmo desejando a maior informação possível, não sente a necessidade de obrigar-nos à especialização técnica. Mas, sobretudo, é mais porque o estudo teológico supõe sim, uma adesão pessoal, da consciência à verdade divina, mas não se prolonga necessariamente na determinação de um empenho total da consciência; ele pode permanecer no nível da compreensão intelectual. O teólogo ou exegeta poderá analisar a Sagrada Escritura e não acolher em si mesmo a presença do Espírito Santo inspirador da palavra. A lectio divinae, ao contrário, é autêntica apenas se a verdade da Palavra de Deus é agarrada, saboreada, assimilada não porque a transformamos em nós, mas porque ela nos tranforma em si (Introdução à Teologia Espiritual, Charles André Bernard)”.

Encontramos Jesus Cristo ainda – e especialmente – na Sagrada Liturgia. Diz-nos a Sacrossantum Concilium (n. 7) que “Cristo está presente em sua Igreja, e especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da missa, tanto na pessoa do ministro, pois aquele que agora se oferece pelo ministério sacerdotal, é o “mesmo que outrora se oferece na cruz”, como sobretudo nas espécies eucarísticas. Ele está presente pela sua virtude nos sacramentos, de tal modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo quem batiza. Está presente na Sua palavra, pois é Ele quem fala quando na Igreja se lêem as Sagradas Escrituras. Está presente, por fim, quando a Igreja ora e salmodia, ele que prometeu: ‘onde se acharem dois ou três reunidos em meu nome, aí eu estou no meio deles (Mt 18,20)”.

Por isso mesmo é que a Constituição Conciliar sobre a sagrada liturgia afirma que “A liturgia, com efeito, mediante a qual, especialmente no divino sacrifício da eucaristia, ‘se atua a obra da nossa redenção’ contribui sumamente para que os fiéis exprimam em suas vidas e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a natureza genuína de toda Igreja (SC 2)”.

Nessa linha de reflexão, vê-se que a sagrada liturgia, especialmente a celebração eucarística, é o local privilegiado do encontro pessoal com Jesus Cristo (DAp 251).

Na eucaristia, os fiéis aprendem a centrar a sua fé e a sua vida no mistério pascal de Jesus Cristo.
Na eucaristia, os fiéis haurem novo impulso missionário, para anunciarem esse mesmo mistério pascal, núcleo fundamental da fé.
Mais, na celebração eucarística, toda a Igreja, em união com Cristo, sua Cabeça, perpetua nas gerações a proclamação incessante das maravilhas de Deus na criação e, sobretudo, na paixão, morte, ressurreição e glorificação de Nosso Senhor Jesus Cristo, “com a convicção de que Ele, por Seu Espírito, o atualiza (o mistério pascal) para nós na celebração (A Eucaristia, José Aldazábal, Editora Vozes, p. 255)”.

Assim é que toda a assembléia prorrompe na aclamação ao memorial: “anunciamos, Senhor a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição, vinde Senhor Jesus”.
Na eucaristia, a Igreja, na primeira epiclese, invoca o Espírito Santo sobre os sinais do pão e do vinho, a fim de que se convertam no corpo e no sangue de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. E invoca, na segunda epiclese, o Espírito Santo sobre os fiéis, para que se tornem um só corpo e um só espírito, ou seja, corpo de Cristo entregue para a vida do mundo.
Assim, enquanto oferece ao Pai, de maneira sacramental, o sacrifício do Senhor na cruz, faz também a oferenda de si mesma (fazei de nós uma perfeita oferenda). “Toda a vida do cristão fica assim potencializada e incorporada ao sacrifício pascal de Cristo (A Eucaristia, José Aldazábal, Editora Vozes, p. 255)”. Ou, como nos diz o Catecismo da Igreja Católica:

“A eucaristia é também o sacrifício da Igreja (...) a vida dos fiéis, seu louvor, seu sofrimento, sua oração, seu trabalho são unidos aos de Cristo e à sua oferenda total, e adquirem assim um valor novo”.

Compreende, assim, a comunidade dos fiéis que o seu culto espiritual consiste em se oferecer como sacrifício vivo, santo e aceitável, sem se ajustar a esse mundo, mas tendo transformada a mentalidade, discernir a vontade de Deus, o que é bom, aceitável e perfeito (Rom 12, 1-2), assumindo, de maneira existencial, o sentido profundo da eucaristia: amor, serviço e dom de si, sentido expresso maravilhosamente no capítulo 13 do Evangelho de São João, quando Jesus, depondo o manto, pôs-se a lavar os pés dos discípulos.
Eis porque afirmaram os bispos em Aparecida:

“Com esse sacramento, Jesus nos atrai para Si e nos faz entrar no seu dinamismo em relação a Deus ao próximo. Existe estreito vínculo entre as três dimensões da vocação cristã: crer, celebrar e viver o mistério de Cristo, de tal modo que a existência cristã adquira verdadeiramente forma eucarística”.

Como se vê, a união com Jesus Cristo, com o mistério da Sua morte e ressurreição, iniciada pelo batismo, a eucaristia renova, fortalece, aprofunda e realiza, levando os fiéis, que tomam do corpo e do sangue do Senhor, àquela inabitação mútua, de que Ele mesmo nos fala no evangelho de João (Jo 6,56), a viverem da Sua Vida (Jo 6,57) e a entrarem na Sua dinâmica de amor e serviço a Deus e ao próximo.

Além disso, na eucaristia, compreendemo-nos corpo de cristo, comunidade que participa da mesma mesa e toma do mesmo pão. Percebemos que formamos uma unidade. Na eucaristia, aprendemos que somos igreja e rezamos pela igreja, pelos irmãos e não só, mas também pela humanidade inteira.

A eucaristia é germem poderoso do Reino de Deus, instaurando a realidade nova no mundo.
Devemos ir à mesa eucarística sempre que possível, mas devemos sobretudo cultivar a eucaristia dominical. O centro do domingo (Dies Domine) deve ser a eucaristia. Deve ser dia da memória da

Sua Ressurreição e do dom do Espírito. É a páscoa semanal, que reconduz a nossa vida à fonte que permear toda a nossa semana.
A partir da eucaristia, vivemos um poderoso encontro com Jesus Cristo e recebemos a força do Seu Espírito Santo, graça que nos habilita, por assim dizer, para o testemunho.

Não podemos deixar de mencionar, ainda, na mesma linha do Documento de Aparecida, o sacramento da reconciliação, “lugar onde o pecador experimenta de maneira singular o encontro com Jesus Cristo, que se compadece de nós e nos dá o dom do seu perdão (...) e nos devolve a alegria e o entusiasmo de anunciá-lo aos demais de coração aberto e generoso (DAp 254)”.

Além disso é preciso ressaltar a vida de oração.
Nós falamos de experiência e toda experiência “implica um momento de receptividade. Onde situar no campo da experiência religiosa e cristã esse momento? A resposta é: na oração. De fato, nela o homem assume uma atitude de espera e de receptividade diante de Deus (Introdução à Teologia Espiritual)”.

O Concílio Vaticano II, na Sacrossantum Concilium, já dissera “a vida espiritual não se limita unicamente à participação da Sagrada Liturgia. O cristão, chamado para a oração comunitária, deve também entrar no seu quarto para rezar a sós ao Pai (Mt 6,6); e, até, segundo ensina o apóstolo, deve rezar sem cessar (I Tes 5,17).
Na carta encíclica No início do Novo Milênio, João Paulo II lembrou que estamos em um tempo, em que “há a necessidade de um cristianismo que se destaque principalmente pela arte da oração”.

Em Aparecida, os Bispos disseram “A oração pessoal e comunitária é o lugar onde o discípulo, alimentado pela palavra e pela eucaristia, cultiva uma relação profunda de amizade com Jesus e procura assumir a vontade do Pai. A oração diária é sinal do primado da graça (Sem mim nada podeis fazer) no caminho do discípulo. Por isso, “é necessário aprender a orar, voltando sempre a aprender essa arte dos lábios do mestre (Lc 11,1)”.

A oração pessoal e comunitária é também lugar de um encontro profundo com Jesus Cristo. E um encontro verdadeiro com Ele sempre nos impulsiona a sairmos de nós mesmos, abrindo-nos à missão.

Na comunidade encontramos Jesus (Mt 18,20) – Documento de Aparecida 256. Violências, reações emocionais, ameaças de que deixaremos a comunidade, tudo isso constituem problemas que precisamos superar. Todos nós precisamos ser os construtores da comunidade, pois não existe comunidade perfeita. Na igreja primitiva também havia problemas, como nos mostra as cartas de São Paulo (I Cor 11), os Atos dos Apóstolos (Cap. 6), etc. Aliás, até a comunidade iniciada por Jesus tinha problemas (Tomé e sua falta de fé; Pedro e a negação; Judas e a traição; João o apóstolo do amor e o desejo de invocar raios sobre a comunidade de Samaria). Não podemos abrir mão da vida em comunidade, porque este é o projeto de Deus para nós, através de Jesus Cristo e no Espírito Santo.

Nos pobres encontramos Jesus – Documento de Aparecida 257. Isso ele mesmo, Jesus, nos diz em Mt 25. Os pobres “exigem o nosso compromisso e nos dão testemunha de fé, paciência e constante luta para continuar vivendo (...) O encontro com Jesus através dos pobres é uma dimensão constitutiva da nossa fé em Jesus Cristo. Da contemplação do rosto sofredor de Cristo neles e do encontro com Ele nos aflitos e marginalizados, cuja imensa dignidade Ele mesmo nos revela, surge a nossa opção por eles. A mesma União com Jesus Cristo é que nos faz amigos do pobre e solidários com o seu destino”.
Tais indicações, todas extraídas do Documento de Aparecida – embora se faça, constantemente, uma ponte com outros documentos da Igreja – são valiosas e nos apontam o caminho de uma autêntica e fecunda relação pessoal com Jesus Cristo, na força renovadora do Espírito Santo, levando-nos àquele anúncio querigmático de que o mundo de hoje, como o de ontem, tanto necessita.

QUERIGMA: ANÚNCIO FUNDADO NUMA EXPERIÊNCIA DE FÉ E REALIZADO NA FORÇA DO ESPÍRITO SANTO

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no Subsídio Doutrinal n. 04, intitulado de “Anúncio Querigmático e Evangelização Fundamental”, lembra-nos que “o anúncio deve ser feito na força do Espírito Santo e baseado no testemunho pessoal”.
Noutro momento, ao discorrer sobre o conteúdo do querigma, afirma, textualmente: “não é um simples discurso ou uma exortação moral; é a proclamação de um acontecimento de vida e salvação, que se dá agora no presente dos ouvintes. Este conteúdo proclama uma pessoa, Jesus Cristo, esta proclamação provoca e abre caminhos para uma experiência de encontro pessoal e apaixonado por Ele”.

Um tal anúncio de Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, não pode estar alicerçado, senão em uma autêntica experiência de fé, num profundo encontro pessoal com Ele, atestado pela força de um convincente testemunho, pois “em nenhum método pode faltar a experiência de fé e o testemunho do evangelizador e da comunidade cristã”.
Abre-se, assim, o espaço oportuno para indagar, num primeiro momento, onde e como podemos viver uma experiência pessoal de Jesus Cristo.

O CONTEÚDO DO QUERIGMA




Jesus inaugura a sua pregação com imponente proclamação: “Cumpriu-se o tempo e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho”.Jesus põe-se a anuncia a boa-nova da chegada do Reino de Deus.

Mas, uma vez dito isso, deve-se logo acrescentar que: “o próprio Jesus é a boa-nova (...) Sendo ele a boa-nova há uma identidade entre mensagem e mensageiro, entre o dizer, o fazer e o ser. A força e o segredo da eficácia de sua ação está na total identificação com a mensagem que anuncia: proclama a boa nova não só por aquilo que diz ou faz, mas também pelo que é (Redemptoris Missio, p. 26)”.

Realmente, nas palavras e nas obras de Jesus, na Sua Pessoa mesmo, vê-se a atuação do reino de Deus na história humana “com poder”. Encontramo-la na restauração integral do homem (física e espiritual), sinalizada por Jesus nas curas e no perdão dos pecados. Mais uma vez, vemo-la no estabelecimento, por Ele, de novas relações entre os homens, de fraternidade, amor e perdão, fundadas, de outro lado, numa nova relação com Deus, aceito efetivamente como Deus e Senhor – é o que se pode depreender, por exemplo, da dinâmica da oração do Pai Nosso. Percebemo-la, ainda, na aproximação preferencial que Ele faz dos pobres e pecadores, deixando-nos entrever o coração misericordioso do Pai, que oferece o Reino como dom e o oferece a todos os homens indistintamente. Sobretudo, vemos a inauguração definitiva do Reino na morte e na ressurreição de Jesus, enquanto manifesta a vitória do poder divino na história, poder que atua em favor dos homens e para sua salvação.

Por tudo isso, podemos dizer com João Paulo II, fazendo eco a expressão feliz de Orígenes, “o Reino de Deus não é um conceito, uma doutrina, um programa sujeito a livre elaboração, mas é, acima de tudo, uma Pessoa, que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível (Redemptoris Missio, p. 33).

A partir do evento pascal, os apóstolos irão anunciar a chegada do Reino de Deus, proclamando a morte e Ressurreição do Senhor. Com isso, manifestavam a compreensão de que o reino é realidade já presente em Cristo Jesus e que sua instauração no mundo mantém uma misteriosa e irrecusável ligação com a Sua pessoa.

Para ilustrar o conteúdo do querigma na igreja primitiva, passamos a registrar a pregação de Pedro e Paulo, conforme no-lo traz os Atos dos Apóstolos:
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“Homens de Israel, ouvi estas palavras! Jesus, o Nazareu, foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele, entre vós, como bem o sabeis. Este homem, entregue segundo o desígnio determinado e a presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o pelas mãos de ímpios. Mas Deus o ressuscitou, libertando-o das angústias do Hades (...) a respeito dele diz Davi (....) não abandonarás minha alma no Hades nem permitirás que teu Santo veja a corrupção (....) previu e anunciou (Davi) a ressurreição de Cristo, o qual na verdade não foi abandonado no Hades, nem sua carne viu a corrupção. A este Jesus Deus ressuscitou e disso nós todos somos testemunhas (...) Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, a este Jesus a quem vós crucificaste. Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para o perdão dos pecados”. (At 2, 22-25. 27.31. 36 – discurso de Pedro)”.

“Sabeis o que aconteceu por toda a Judéia: Jesus de Nazaré, começando pela Galiléia, depois do batismo proclamado por João, como Deus o ungiu com o Espírito Santo e com poder, ele que passou fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo diabo, porque Deus estava com Ele. E nós somos testemunhas de tudo o que fez na região dos judeus e em Jerusalém, ele a quem no entanto mataram suspendendo num madeiro. Mas Deus o ressuscitou ao terceiro dia e concedeu-lhe que se tornasse visível, não a todo o povo, mas às testemunhas anteriormente designadas por Deus, isto é, a nós, que comemos e bebemos com Ele após a Sua ressurreição dentre os mortos (...) Ele é o Juiz dos vivos e dos mortos, como tal constituído por Deus. Dele os profetas dão testemunho de que, por meio do seu nome, receberá a remissão dos pecados todo aquele que nele crer (At. 10, 36-43 – discurso de Pedro)”.

“A vós foi enviada esta palavra da salvação. Pois os habitantes de Jerusalém e seus chefes cumpriram, sem o saber, as palavras dos profetas, que a cada sábado são lidas. Sem encontrar nele motivo algum de morte, condenaram-no e pediram a pilatos que o mandassem matar. Quando, pois, cumpriram tudo o que estava escrito a seu respeito, retiraram-no do madeiro e o depuseram num túmulo. Mas Deus o ressuscitou dentre os mortos e por muitos dias apareceu aos que, com ele, tinham subido da Galiléia para Jerusalém, os quais são agora suas testemunhas diante do povo (....) a promessa feita a nossos pais, Deus a realizou plenamente para nós seus filhos, como também está escrito nos Salmos (...) Ficai sabendo, pois, irmãos é por ele que vos é anunciada a remissão dos pecados (Discurso de Paulo - At. 13, 26c-30. 32b-33 a. 38)

A leitura atenta desses textos bíblicos revela logo uma importante conclusão, a saber: a componente fundamental do querigma é a mensagem de “Jesus Cristo, crucificado e ressuscitado, força e sabedoria de Deus (1Cor 1,23-24), que transforma e salva a vida (Subsídios doutrinais 04, CNBB)”.

A este conteúdo fundamental, agrega-se a indicação de que chegou o tempo de realização das profecias, alude-se ao ministério de Jesus – enquanto realidade que precedeu à sua paixão, morte, ressurreição e glorificação – e se apela à conversão e ao batismo, para fins de se receber o perdão dos pecados e o dom do Espírito Santo, caminho pelo qual se cumpre a salvação.
Numa boa síntese, pode-se dizer que o conteúdo do querigma é uma Pessoa. Anuncia-se, como núcleo fundamental da mensagem da Igreja, o evento de Jesus Cristo e a salvação que Ele comunica.

Finalmente, é de interesse perceber a linha de continuidade entre o anúncio querigmático de Jesus e o da Igreja primitiva: em ambos os casos, anuncia-se o tempo do cumprimento das profecias; em ambos os casos, proclama-se o advento do Reino de Deus, salientando-se que, no caso da igreja primitiva, a vinda do Reino se identifica com o ministério, paixão, morte, ressurreição e glorificação de Jesus; e, finalmente, remata-se, nas duas situações, com o apelo à conversão.

Nessa linha de percepção, entende-se melhor as palavras de João Paulo II: “Como outrora, é preciso unir hoje, hoje, o anúncio do Reino de Deus (o conteúdo do ‘kerigma de Jesus) e a proclamação da vida de Jesus (o kerigma dos apóstolos. Os dois anúncios completam-se e iluminam-se mutuamente (RM 16, p. 30).

O QUE É O QUERIGMA



A palavra kerigma vem do grego kerissô que quer dizer “anúncio”.
O vocábulo evoca a proclamação feita pelo arauto depois de uma grande vitória. Um grito forte, destinado a tornar conhecida e oficial, uma boa notícia.
Para a igreja, a palavra designa “o núcleo essencial da mensagem evangélica (Dicionário de Liturgia)”, que ela (igreja), por mandato de Cristo, deve transmitir.
Compreende “a proclamação um evento histórico-salvífico e, ao mesmo tempo, um anúncio de vida (Subsídios Doutrinais 4, CNBB)”.
Enquanto proclamação de um evento histórico salvífico, o querigma é a mensagem vibrante de que “Jesus de Nazaré é o Filho de Deus que se fez homem, morreu e ressuscitou para a salvação de todos (Subsídios Doutrinais 4, CNBB). Enquanto anúncio de vida, alcança toda a história, oferecendo a todos os homens uma “esperança viva de salvação”, na pessoa de Jesus Cristo Ressuscitado, que nos comunica a Sua Vida, realizando as promessas feitas por Deus ao povo da primeira aliança.
O querigma é o anúncio da chegada do reino de Deus, da atuação da vontade de Deus, na pessoa de Jesus. “A soberania de Deus, cheia de misericórdia, se manifesta em Jesus Cristo (cf. 1Cor 1,13; 2 Cor 3,9; 5,21; Ef 4,24; Fil 1,11) e se traduz no amor aos pecadores, aos pobres e àqueles que se reconhecem necessitados (Subsídios doutrinários 04, CNBB).
É, pois, o querigma um primeiro anúncio, destinado a sensibilizar o coração e abri-lo ao mistério de Cristo, orientado a despertar a fé naquelas pessoas que não a possuem, ou mesmo naquelas que da fé se afastaram e para as quais o crer não guarda interesse algum com a direção a ser dada a própria existência.

QUERIGMA


Depois da morte de cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, os apóstolos, medrosos e envergonhados, passaram a se esconder dos judeus, permanecendo a portas trancadas (Jo 19,19).
Viveram, porém, uma experiência profunda e marcante, que mudou radicalmente esse quadro e os transformou em intrépidas testemunhas do Evangelho: viram o Senhor Ressuscitado e receberam o Dom do Espírito Santo.

O resultado disso foi um anúncio forte e corajoso, com a forma de proclamação retumbante de um acontecimento – o acontecimento Jesus – que deve ser de todos conhecido. Tal proclamação aparece sintetizada no discurso de Pedro: “Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, a este Jesus a quem vós crucificaste (At 2,36)”.

Em conseqüência desse anúncio vibrante, portador do entusiasmo próprio daqueles que bem sabem que estão a comunicar uma boa notícia, apta a conferir pleno sentido à vida daqueles que escutam, o povo indagou: “Que devemos fazer irmãos?” Abriram-se, assim, ao acolhimento do nome de Jesus – isto é, da Sua pessoa, da Sua palavra e da Sua vida – dando uma nova orientação à existência, a partir do mistério pascal.

Ainda hoje, como sempre, a Igreja é enviada a realizar tal anúncio, e o mundo de hoje, tal como o de ontem, dele necessita e, de certa forma, o espera – embora, às vezes, não o saiba – à medida que permanece, como que às apalpadelas, em busca do sentido pleno da existência.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

“A VIDA ETERNA QUE A VÓS ANUNCIAMOS” (1 Jo 1,2)


Temas maravilhosos de Raniero Cantalamessa

1. Secularização e secularismo
Nesta meditação, veremos o segundo obstáculo que a evangelização no mundo ocidental moderno encontra: a secularização. No Motu Proprio com o qual o Papa criou o Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, é dito que este “está a serviço das Igrejas particulares, especialmente naqueles territórios de antiga tradição cristã onde se manifesta mais claramente o fenômeno da secularização”.
A secularização é um fenômeno complexo e ambivalente. Pode significar a autonomia das realidades terrenas e a separação entre o reino de Deus e o reino de César e, neste sentido, não só não é contra o Evangelho, mas encontra nele uma de suas raízes profundas. Pode, no entanto, indicar também todo um conjunto de atitudes contrárias à religião e à fé, pelo qual é preferível usar o termo secularismo. O secularismo está para secularização assim como o cientificismo para a ciência e o racionalismo à racionalidade.
Cuidando dos obstáculos ou desafios que a fé encontra no mundo moderno, referimo-nos exclusivamente a este sentido negativo da secularização. Mesmo assim delimitada, no entanto, a secularização tem muitas faces, dependendo dos campos em que se manifesta: a teologia, ciência, ética, a hermenêutica bíblica, a cultura em geral, a vida cotidiana. Nesta meditação, tomo o termo em seu primordial. A secularização, como o secularismo, na verdade, derivam da palavra saeculum, que no uso comum termina por indicar o tempo presente (aeon atual, segundo a Bíblia), por oposição à eternidade (aeon futuro, “séculos dos séculos”, da Bíblia. NT: um período de tempo extremamente longo e indefinido). Nesse sentido, o secularismo é sinônimo de temporalidade, de redução do real somente à dimensão terrena.
A queda do horizonte da eternidade ou da vida eterna tem, sobre a fé cristã, o mesmo efeito que a areia jogada sobre uma chama: a sufoca, a apaga. A crença na vida eterna é uma das condições de possibilidade da evangelização. “Se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão”. (1 Coríntios 15,19).
2. A ascensão e a queda da idéia de eternidade
Recordemos brevemente a história da crença na vida após a morte, vai nos ajudar a medir a novidade trazida pelo Evangelho neste campo. Na religião hebraica do Antigo Testamento, essa crença se afirma tardiamente. Somente depois do exílio, diante do fracasso das expectativas temporais, nasce a ideia da ressurreição da carne e de uma recompensa após a morte para os justos, e ainda assim não todos a adotam (os saduceus, como sabemos, não partilham tal crença).
Isso desmente clamorosamente a tese daqueles (Feuerbach, Marx, Freud) que explicam a crença em Deus com o desejo de uma recompensa eterna, como projeção no além de expectativas temporais frustradas. Israel acreditou em Deus, muitos séculos antes do que em uma recompensa eterna no além! Não é, portanto, o desejo de uma recompensa eterna que produziu a fé em Deus, mas é a fé que produziu a crença em uma recompensa pós morte.
No mundo bíblico, temos a plena revelação da vida eterna com a vinda de Cristo. Jesus não estabelece a certeza da vida eterna sobre a natureza do homem, a imortalidade da alma, mas sobre “o poder de Deus”, que é um "Deus não de mortos, mas de vivos" (Lc 20, 38). Depois da Páscoa, a este fundamento teológico, os apóstolos acrescentarão o cristológico: a ressurreição de Cristo dentre os mortos. Nela, o Apóstolo fundou a fé na ressurreição da carne e na vida eterna: “Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Mas, na realidade, Cristo ressuscitou dos mortos como primícias dos que morreram” (1 Cor 15, 12.20).
Também no mundo greco-romano assiste-se a uma evolução na concepção de vida após a morte. A mais antiga ideia é a de que a verdadeira vida termina com a morte; depois dessa existe somente um simulacro de vida, num mundo de sombras. Uma novidade se registra com o aparecimento religião órfico-pitagórica. De acordo com ela, o verdadeiro eu do homem é a alma, que, libertada da prisão (sema) do corpo (soma), pode finalmente viver sua verdadeira vida. Platão dará uma dignidade filosófica a esta descoberta, baseando-a na natureza espiritual e, portanto, imortal, da alma [1].
Essa crença permanecerá, no entanto, sendo minoritária, reservada aos iniciados nos mistérios e aos seguidores de escolas filosóficas especiais. Para a massa, persistirá a antiga crença de que a vida real termina com a morte. São conhecidas as palavras que o imperador Adriano dirigi a si próprio próximo de morrer: “Pequena alma, alma terna e inconstante,companheira do meu corpo, de que foste hóspede,vais descer àqueles lugares pálidos,duros e nus, onde deverás renunciar aos jogos de outrora.Por um momento, contemplemos juntos ainda os lugares familiares,os objetos que certamente nunca mais veremos...” [2].
Entende-se neste contexto o impacto que devia ter a mensagem cristã de vida após a morte infinitamente mais plena e mais alegre do que a da terra; também podemos entender por que a ideia e os símbolos da vida eterna são tão comuns nas sepultura cristãs das catacumbas romanas.
Mas o que aconteceu à ideia cristã de uma vida eterna para a alma e para o corpo depois de ter triunfado sobre a ideia pagã de “escuridão além da morte”? Ao contrário do momento atual, no qual o ateísmo é primariamente expresso na negação da existência de um Criador, no século XIX, ele se expressava na negação da vida após a morte. Acolhendo a afirmação de Hegel, segundo a qual “os cristãos desperdiçam no céu a energia destinada à terra”, Feuerbach e principalmente Marx combateram a crença na vida após a morte, sob o pretexto de que aliena o compromisso terreno. À ideia de uma sobrevivência pessoal em Deus, se substitui uma ideia de sobrevivência na espécie e na sociedade do futuro.
Pouco a pouco, recaiu sobre a palavra eternidade a suspeita e o silêncio. O materialismo e o consumismo completaram a obra nas sociedades opulentas, fazendo parecer inconveniente que se fale ainda de eternidade entre pessoas cultas e em sintonia com os tempos. Tudo isso provocou claramente um retrocesso na fé dos crentes que, com o tempo, fez-se tímida e reticente sobre este ponto. Quando ouvimos o último sermão sobre a vida eterna? Continuamos a rezar o Credo: “Et expecto resurrectionem mortuorum et vitam venturi saeculi” (“E Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”), mas sem dar muito peso a estas palavras. Kierkegaard tinha razão quando escreveu: "A vida após a morte tornou-se uma piada, uma necessidade tão incerta que não só ninguém respeita, mas nem mesmo se cogita que exista, ao ponto que se divertem com o pensamento de que houve um tempo em que esta ideia transformava a toda a existência” [3].
Qual é o efeito prático desse eclipse da ideia de eternidade? São Paulo refere-se à intenção daqueles que não acreditam na ressurreição dos mortos: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos” (1 Cor. 15,32). O desejo natural de viver sempre, distorcido, torna-se um desejo ou frenesi de viver bem, ou seja, agradavelmente, mesmo que às custas dos outros, se necessário. Toda a terra se torna o que Dante disse da Itália da sua época: "o canteiro que tão nos faz ferozes". Perdido o horizonte da eternidade, o sofrimento humano parece dupla e irremediavelmente absurdo.

3. A eternidade: uma esperança e uma presença

Ainda a propósito do secularismo, como para o cientificismo, a resposta mais eficaz não é combater o erro contrário, mas fazer brilhar novamente diante dos homens a certeza da vida eterna, confiando na força intrínseca que possui a verdade quando é acompanhada pelo testemunho de vida. "Sempre se poderá negar uma ideia com outra – escreve um antigo Padre – e uma opinião pode ser oposta à outra; mas o que poderá se opor a uma vida?”
Devemos também aproveitar a correspondência de tal verdade ao desejo mais profundo, ainda que reprimido, do coração humano. A um amigo que o repreendeu, quase como se seu desejo de eternidade fosse uma forma de orgulho e arrogância, Miguel de Unamuno, que não era um apologista da fé, disse em uma carta:
“Eu não estou dizendo que merecemos uma vida depois da morte, nem que a lógica nos mostre isso; estou dizendo que a necessito, mereça ou não, e nada mais. Estou dizendo que o que é passageiro não me satisfaz, que tenho sede de eternidade, e que, sem ela, tudo dá no mesmo para mim. Eu necessito disso, necessito! E, sem isso, nem a alegria de viver quer dizer coisa alguma. É muito cômodo dizer ‘temos de viver, temos de estar contentes com a vida!’ E os que não nos contentamos com ela?” [4].
Não é que desejasse a eternidade - acrescentava na mesma ocasião - desprezando o mundo e a vida aqui embaixo: “Eu amo tanto a vida que, perdê-la, parece-me o pior dos males. Não amam realmente a vida aqueles que vivem o dia a dia, sem preocupar-se por saber se vão perdê-la totalmente ou não”. Santo Agostinho dizia a mesma coisa: Cui non datur semper vivere, quid prodest bene vivere?, “De que serve viver bem, se não nos é dado viver para sempre?” [5]. “Tudo, exceto o eterno, é vão ao mundo”, cantou um dos nossos poetas [6].
Aos homens do nosso tempo, que cultivam no fundo do coração esta necessidade de eternidade, sem talvez ter a coragem de confessar a outros e nem para si mesmo, podemos repetir o que Paulo disse aos atenienses: “Pois bem, aquilo que adorais sem conhecer, eu vos anuncio” (cf. At 17,23).
A resposta cristã ao secularismo, no sentido que entendemos aqui, não se baseia, como para Platão, em uma ideia filosófica - imortalidade da alma - mas em um evento. O Iluminismo tinha colocado a famosa pergunta de como é possível atingir a eternidade, enquanto você estiver no tempo, e como dar um ponto de partida histórico para uma consciência eterna [7]. Em outras palavras: como se pode justificar a alegação da fé cristã de prometer uma vida eterna e de ameaçar com uma pena igualmente eterna por atos realizados no tempo.
A única resposta válida para este problema é aquela baseada na fé na encarnação de Deus. Em Cristo, o eterno entrou no tempo, manifestado na carne; diante dele é possível tomar uma decisão para a eternidade. É assim que o evangelista João fala da vida eterna: “Vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que se tornou visível para nós” (1 Jo 1, 2).
Para o crente, a eternidade não é, como se vê, somente uma esperança, é também uma presença. Realizamos a experiência cada vez que fazemos um verdadeiro ato de fé em Cristo, porque todo aquele que nele crê “já possui a vida eterna” (cf. 1 Jo 5,13), e toda vez que recebemos a comunhão, onde nos é dado “o penhor da glória futura” (futurae gloriae nobis pignus datur); toda vez que escutamos as palavras do Evangelho são “palavras de vida eterna "(Jo 6,68). São Tomás de Aquino também afirma que “a graça é o início da glória” [8].
Esta presença da eternidade no tempo é chamada Espírito Santo. Ele é descrito como “garantia da nossa herança” (Ef 1,14; 2 Coríntios 5,5), e foi dada a nós porque, tendo recebido as primícias, nós ansiamos pela plenitude. “Cristo - escreve Santo Agostinho - nos deu o penhor do Espírito Santo com o qual ele, que não poderia enganar-nos, quis ter certeza do cumprimento de sua promessa. O que ele prometeu? Ele prometeu a vida eterna, cuja garantia é o Espírito Santo que nos foi dado ” [9].